que fazia as vezes da batuta de um regente. Estava num púlpito ladeado pela cúpula militar, por vários ministros, além de centenas de membros das forças de segurança, em frente à imensa área ao ar livre da Escola de Cadetes General Santander, o mais importante centro de formação policial da Colômbia, em Bogotá. O objetivo era dar posse à nova cúpula da Polícia Nacional.
Consolidava-se ali a mais ousada mudança no comando das Forças Armadas já feita no país. “Até aqui medimos a eficiência da segurança pelo número de mortes ou de presos em cada ação policial. Os indicadores não melhoraram, ao contrário”, sublinhou, opondo-se às violentas orientações das últimas décadas.
Uma rápida recapitulação.
A cerimônia representou um passo decisivo numa articulação iniciada antes da posse e oficializada exatamente uma semana antes, em 12 de agosto.
Naquele dia, o presidente anunciou a passagem compulsória para a reserva de nada menos que 52 generais, abrindo 24 postos de comando na Polícia Nacional, 16 no Exército, 6 na Marinha e mais 6 na Força Aérea.
Sem sutileza, o presidente avançou sobre instituições tidas como intocáveis na América Latina, ao mesmo tempo em que buscou tirar da frente potenciais ameaças ao futuro de sua administração.
Durante a campanha, o então candidato fora duramente criticado pelo general Eduardo Zapatero, comandante e representante da ala mais dura do Exército, que o chamara de “politiqueiro”, por denunciar constantes ameaças armadas.
O então ministro da Defesa, Diogo Molano, engrossou o coro, acusando o dirigente da coalizão Pacto Histórico de mentiroso.
Em 27 de junho, uma semana após a vitória, ao ser perguntado sobre as Forças Armadas, em entrevista ao El país, Petro afirmou que sua “cúpula foi muito impulsionada pela linha política do governo que chega ao fim” e emendou:
“Esse caminho é insustentável. (…) Existem correntes de extrema direita que devem ser eliminadas. Algumas estão proclamando golpes e coisas assim”. No dia seguinte, Zapatero solicitou sua passagem para a reserva.
Assim, as mudanças eram pedra cantada. O que surpreendeu foi sua extensão.
“Nunca antes na história deste país se viu uma varrida tão grande como a que acabam de fazer o presidente e seu ministro da Defesa, Iván Velásquez”, ironizou El Colombiano, centenário diário de Medellin, no último dia 13.
Velásquez, um advogado e diplomata de 67 anos, é um experiente defensor dos direitos humanos e entre 2013-16, chefiou a Comissão Internacional contra a Impunidade na Guatemala.
Notório opositor de Álvaro Uribe, sua nomeação embute uma mensagem clara, destaca o portal La silla vacia:
“A prioridade oficial será uma reforma radical nas Forças Armadas, ao invés de se estender uma bandeira branca para setores civis e militares contrariados com a virada à esquerda na presidência”.
Some-se a tais iniciativas o anúncio de uma reforma tributária progressiva, destinada a taxar lucros e dividendos do topo da pirâmide social.
Gustavo Petro parece colocar em prática dois ensinamentos clássicos da vida política.
O primeiro é a frase de Maquiavel: “O mal bem empregado (…) é aquele que se faz de uma só vez, por necessidade de segurança”.
Trazida para os dias de hoje e esvaziada de seus aspectos morais, sua ideia central implica não vacilar em desafiar interesses consolidados.
A segunda é a métrica dos cem dias, estabelecida por Franklin Delano Roosevelt, logo após a posse, em março de 1933, quando os Estados Unidos viviam o auge da grande depressão.
Em curtíssimo período, aproveitando a legitimidade recém-conferida pelas urnas, o presidente enviou ao Congresso mais de uma centena de projetos de investimento, criação de empresas, fundos de investimento e ações visando minorar de imediato o drama social vivido pela população. Começava ali o New Deal.
As raízes das mudanças na área militar também devem ser buscadas no acordo de paz estabelecido entre o governo de Juan Manuel Santos (2010-18) e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), em novembro de 2016.
Do entendimento surgiram três organismos destinados a institucionalizar o processo: 1. A Comissão da Verdade, responsável pelo esclarecimento de crimes contra os direitos humanos cometidos ao longo de mais de seis décadas de conflito armado; 2. A Unidade de Busca de Pessoas Desaparecidas (UBPD), que tem o prazo de 20 anos para tentar encontrar e identificar o destino de cerca de 120 mil pessoas no período, e 3. A Jurisdição Especial para a Paz (JEP), a quem caber resolver intrincadas controvérsias no âmbito dos direitos humanos. São processos ainda em curso.
A isso, somam-se dois fatores políticos: o desgaste da repressão brutal dos governos de de Álvaro Uribe e Iván Duque (2018-22).
As iniciativas se desdobraram em carta branca para que setores paramilitares ligados ao exército promovessem execuções sumárias em movimentos sociais e em feroz repressão aos maciços protestos de rua de 2021, por parte do Esquadrão Móvel Antidistúrbios (Esmad).
Trata-se de uma espécie de tropa de choque da Polícia Nacional, criada em 1999 para conter manifestações populares.
A impopularidade do uribismo contaminou os órgãos repressivos do Estado. A intervenção realizada pelo governo recém empossado sofre pouca resistência social até aqui, além de contar com divisões no interior das próprias forças.
As eleições presidenciais mostraram um país dividido. A vitória de Petro sobre Rodolfo Hernández, da direita, foi 50,44% a 47,31% dos votos.
Ao invés de buscar algum tipo de composição programática com o adversário de véspera, o presidente reafirma sua disposição de enfrentar tabus atávicos na sociedade, sem cair em aventuras inconsequentes.
* Com informações de Pietro Alarcon.
* Gilberto Maringoni de Oliveira é um jornalista, cartunista e professor universitário brasileiro. É professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, tendo lecionado também na Faculdade Cásper Líbero e na Universidade Federal de São Paulo.
Fonte: https://patrialatina.com.br/sem-medo-das-casernas-na-colombia/
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